sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A bomba norueguesa era cristã? Respondendo a um vídeo

Esses dias vi um vídeo de um ateu chamado Yuri que, numa resposta a um outro vídeo, discutia a relação do ateísmo e do cristianismo no recente massacre realizado na Noruega e na violência em geral:




Por achar o vídeo interessante, e para quebrar o ritmo de posts quase anual desse blog, resovi tecer aqui alguns comentários sobre isso.

Primeiro de tudo, eu não sei se o realizador dos atentados (Anders Behring Breivik, fiz uma copicola disso pois não sabia esse nome) estava impulsionado pelo ateísmo ou cristianismo ou qualquer outra visão de mundo particular. Não li a "Declaração Européia de Independência" que ele deixou na internet, e portanto não sei dizer suas razões. Quero não discutir isso, mas as declarações mais gerais que foram feitas.

Certamente muita gente estranhará que eu estou respondendo não com um vídeo, mas com um texto. É que eu cresci com internet discada, e não tenho lá muita intimidade em ver vídeos muito longos, nem gravá-los e colocá-los na internet -- não por gosto mas por falta de familiaridade. Isso perdura mesmo depois de já ter mais banda de internet.

Existem dois grandes argumentos no vídeo: uma acusação de Falácia do Escocês para os cristãos, e uma catena de trechos do Novo Testamento que supostamente apóiam um comportamento violento, de maneira que o cristianismo tem em sua essência um elemento hostil. Vamos a eles.

A Falácia do Escocês

Primeiro, eu não tenho muito a discordar do que o Yuri disse acerca da Falácia do Escocês. Trata-se basicamente de um argumento ad hoc, em que uma definição ou argumento prévio é alterado perante nova evidência. De fato, cristãos fazem isso certas vezes, num movimento deveras inválido. Deve-se notar que ateus também fazem uso dessa falácia: por exemplo, já vi alguém tentando arguir que Stálin, o cruel governante soviético conhecido pela perseguição religiosa, era na verdade um cristão, pois havia na juventude estudado num internato ortodoxo (!).

Quero notar, porém, que muitos aplicam tal falácia involuntariamente. Geralmente tais cristãos vêm de um ambiente evangélico (do qual eu também faço parte), em que "ser cristão" é sinônimo de uma experiência de conversão, que leva a uma mudança de comportamento e atitudes pecaminosas. Mesmo que a maioria das pessoas no ocidente creia no Deus cristão e em Jesus Cristo (que é a definição básica de cristão), o fato de que eles não deixam tal fé permear toda a sua vida faz com que eles possam não ser considerados "cristãos de verdade".

Há, contudo, casos em que há quantidade de evidência tão forte que o cristianismo de certas pessoas é apenas algo de boca pra fora, em que o argumento de "não é um cristão de verdade" deixa de ser ad hoc e torna-se um argumento legítimo. (E talvez o cara do canal "CasandoOVerbo", citando longos trechos do documento do terrorista que possuem certo teor anti-religioso, tenha feito isso.)

Por último, e mais importante: não é porque alguém de uma dada visão de mundo comete um certo erro que a visão de mundo possa ser responsabilizada por ela. Trata-se de uma outra falácia: falácia de generalização indevida. Da mesma forma, sabemos que governos que aderiram ao ateísmo como posição oficial (como o stalinista citado acima) provocaram massacres em massa de sua população, e nem por isso deve-se concluir que todos, ou mesmo a maioria dos ateus sejam violentos... A atitude de certos cristãos não determina a de todo o cristianismo.

O Novo Testamento incentiva a violência?

Se eu concordo basicamente com o primeiro argumento do Yuri, discordo totalmente do segundo, que falha miseravelmente. Ele faz várias citações do Novo Testamento, onde Jesus ou os apóstolos estariam apoiando a violência, como algo desejado por Deus. Na verdade, ele compreendeu bem pouco esses textos. Eu comentarei a catena dividindo-a em três grupos:

1- Textos que falam de assuntos completamente diferentes de violência;
2- Textos que são na verdade citações do Antigo Testamento, utilizado pelo autor para realizar um argumentação;
3- Textos que falam de atos divinos em relação ao mundo, dos quais o cristão não toma parte.

Vou demonstrar isso com alguns dos textos (não todos os que o Yuri citou, por razões de espaço):

1- Textos que falam de assuntos completamente diferentes de violência:
Por exemplo, Mateus 10:34-37:
Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra, e assim os inimigos do homem serão os seus familiares. Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim.
Na verdade este texto está falando da perseguição que os cristãos sofreriam, que seriam realizadas até mesmo pelos familiares deles, não de uma ordem para que os cristãos iniciem uma guerra violenta contra os não-cristãos. Bastava ler um pouquinho acima no mesmo capítulo paar entender isso:
Acautelai-vos, porém, dos homens; porque eles vos entregarão aos sinédrios, e vos açoitarão nas suas sinagogas, e sereis até conduzidos à presença dos governadores, e dos reis, por causa de mim, para lhes servir de testemunho a eles, e aos gentios. Mas, quando vos entregarem, não vos dê cuidado como, ou o que haveis de falar, porque naquela mesma hora vos será ministrado o que haveis de dizer. Porque não sois vós quem falará, mas o Espírito de vosso Pai é que fala em vós. E o irmão entregará à morte o irmão, e o pai o filho; e os filhos se levantarão contra os pais, e os matarão. E odiados de todos sereis por causa do meu nome; mas aquele que perseverar até ao fim será salvo. (Mt 10:17-22)
Talvez alguém objete que não se deve exigir a defesa até à morte de uma causa (o que eu acho bem improvável, já que isso é reconhecido em outros pontos como, a questão da proteção de outrem), mas isso está fora do escopo desse post. É claro que não há aqui nenhuma incitação de violência por Jesus, mas a ordem de suportar a violência feita contra eles. É o mesmo caso de Lucas 12:49-53 e João 12:25.


2- Textos que são na verdade citações do Antigo Testamento, utilizado pelo autor para realizar uma argumentação:

Um exemplo disso é quando Yuri cita Mateus 15:4-7 (ele só lê o versículo 4, porém):

Porque Deus ordenou, dizendo: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem maldisser ao pai ou à mãe, certamente morrerá. Mas vós dizeis: Qualquer que disser ao pai ou à mãe: É oferta ao Senhor o que poderias aproveitar de mim; esse não precisa honrar nem a seu pai nem a sua mãe, E assim invalidastes, pela vossa tradição, o mandamento de Deus. Hipócritas, bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo: Este povo se aproxima de mim com a sua boca e me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim. (inseri o versículo 8 para melhor compreensão)
Obviamente, Jesus não está ordenando que os cristãos matem quem desrespeita o pai e a mãe (e ao contrário do que o Yuri diz, o texto do AT citado não está falando de crianças, mas isso já é outra história). Ele está arguindo contra a prática de abandonar o pai e a mãe com o pretexto de estar oferecendo a possível ajuda a eles "ao Senhor" (i.e., como uma oferenda no Templo). Jesus demonstra como Deus abomina a negligência com os pais através do texto supracitado, logo tal prática acabava indo contra o que Deus ordenava e punha a mostra a falsa religiosidade dos proponentes dessa prática.


3- Textos que falam de atos divinos em relação ao mundo, dos quais o cristão não toma parte:

Essa é a categoria onde o Yuri é mais infeliz nas suas colocações. São ou descrições de algum ato punitivo divino, ou o anúncio dele. Por exemplo, quando Jesus emite juízos contra Corazim, Betsaida e Cafarnaum (Mt 11:20-24), é Deus quem irá castigar esses locais por terem se recusado a se arrepender (e pela linguagem usada, não se trata nem de algo realisado no plano temporal, mas no além-túmulo), e não há nenhuma incitação de que os cristãos destruam essas cidades (ou qualquer outra que recusa os ensinamentos de Jesus).

Alguém pode argumentar que Deus não tem direito de aplicar tais punições e isso o torna cruel, mas isso está além do escopo desse artigo. O que importa aqui é que tais ações divinas não incitam a violência por parte dos cristãos -- na verdade, elas são razão para a não-violência dos cristãos, vide Romanos 12:18-20:

Se for possível, quanto estiver em vós, tende paz com todos os homens. Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira, porque está escrito: Minha é a vingança; eu recompensarei, diz o Senhor.Portanto, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça.

Logo, a destruição das cidades galiléias acima, a cegueira de Elimas por ele ser um mago anti-cristão, a morte de Ananias e Safira por sua mentira e a praga sobre Herodes, sendo todos exemplos de punições divinas sobre alguém, não pode ser modelo para as ações dos cristãos, pois tais atos são exclusivamente divinos. Tomar a incubência de realizá-los seria tentar tomar o lugar de Deus.

Gostaria de fazer também uma correção no que foi dito sobre a morte de Herodes. Na verdade, ele não foi "atacado de vermes" por simplesmente não ter dito "glória à Deus", mas por ter deixado que uma adoração lhe fosse dada (mas o contexto do capítulo parece sugerir também uma punição pela perseguição aos cristãos por ele deflagrada, cf At 12:1-3, 19):

E num dia designado, vestindo Herodes as vestes reais, estava assentado no tribunal e lhes fez uma prática. E o povo exclamava: Voz de Deus, e não de homem. E no mesmo instante feriu-o o anjo do Senhor, porque não deu glória a Deus e, comido de bichos, expirou. (Atos 12:21-23)


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